Tuesday, October 09, 2007

Chuva

Chuva

Tudo hoje está frio.
Estes tons arrefecem-me.
Encontro-me no nublado coberto pelo medo do infinito.
Estou dentro de cada pingo de chuva. Mas não chove!
São lágrimas...
Saudade!

Lágrimas de uma prostituta

Lágrimas da prostituta.

É Madrugada. O abafo do céu esconde o silêncio.
Ruas vazias, pedras, vidros que o escuro reflecte.
Sozinha na estrada..caminha descalça e rastejante.
A pele arde de tudo...dos arranhões,
Das feridas que o frio queima.
Exausta, chega não dá mais!!!
Debruçando-se, filtram-se memórias, infiltram-se instantes.
Lembranças do brilho do Sol no sorri so da mãe
Lembranças do abraço da última amiga
Lembranças do primeiro beijo.
Os joelhos sangram no alcatrão.
Os olhos borrados, roupa interior rasgada.
Deitada, lançada na estrada.
Foi assim o último choro.


Rita/Setembro 2007
(O que mais me faz feliz é ser capaz de ser mais do que uma pessoa)

Um homem cego

Um homem cego, encontra uma jovem num passeio. A música de fundo é instrumental- saxofone.

J- Boa tarde... posso ajudá-lo?

C- sim, estou meio desorientado. É muito raro isto acontecer.

J- Pois, estáva aqui sentada a espera dum amigo e reparei que o senhor parece estar perdido.

C- Sabe... é a primeira pessoa desde há muito tempo que me oferece ajuda! (pausa e suspiro) Estou cansado.

J- Venha, sente-se aqui.
(encaminhando o homem para o banco no passeio, a jovem senta-se ao seu lado)

C- Posso lhe pedir um favor?

J- Claro...

(o homem devagar leva as suas mãos até a cara da jovem, apalpando levemente suas feições)

C- Não hesitou... normalmente quando faço isto as pessoas se afastam.

J- Não tenho problema nenhum... Queria fazer uma pergunta, o senhor quando “contorna” os traços da cara das pessoas, consegue ver e sentir a beleza delas?

C- Claro que sim. É muito bonita. E a sua voz também transmite uma grande alegria e a vontade com as pessoas.

(silêncio)

C- Descreva-me o que está agora à nossa volta, assim quem sabe eu me localizo.

J- Estamos mesmo em frente a uma tabacaria com uma senhora idosa e gorda na bancada... ao lado há uma Marisqueira com mesas ao ar livre, cheia de turistas que apreciam um músico que enquanto toca saxofone, espera uns trocos. Atrás do nosso banco dois gémeos pequenos compram balões numa bancada colorida de brinquedos... Já está a anoitecer e pequenos canteiros de plantas e flores atravessam o passeio e são iluminados pelos postes...

C- Continue!

J- Estamos no centro da cidade. Perto da estação de metro. As pessoas andam depressa. Nem se tocam. Uns mais nervosos que outros, outros mais exaustos, uns mais sorridentes, um ou outro casal apaixonado. Deste banco consegue-se ver dois apartamentos... Nas varandas encontra-se roupa estendida... uma criança que brinca com o cão... Um velho que dorme na cadeira sobre o jornal...

(o homem fica mais e mais emocionado, e interrompe lentamente)

C- Cada janela uma vida! Nestes minutos, eu consegui ver tudo...
Esse rapaz enganou-se muito acerca de si. Eu antes de ser cego, raramente ligava a essas coisas pequenas da vida... Eu daria tudo para voltar a ver. Mas talvez nem chegasse a perceber como é importante valorizarmos todas estas coisas bonitas que nos rodeiam agora neste momento. Começando por si! Muito obrigado! Este escuta-la agora, foi como voltar novamentar a ver.

J- (após um longo suspiro) Chegou o meu amigo... O senhor já sabe onde está?

C- Sei sim...muito bem mesmo! muito obrigada!

( a jovem pegou nas mãos dos homem, e levou-as até ao seu sorriso. O homem sorrir de volta)

(meio da noite, o cego chega à sua residência, e começa uma conversa com o seu companheiro de quarto, um velho)

C- Hoje conheci uma bela jovem... uma jovem que sabe escutar a vida.

V- Aonde?

C- Num passeio, na zona do centro. Quando ela me descreveu todo aquele lugar onde estavamos os dois sentados, eu descobri que era exactamente o mesmo lugar onde estive sentado à uns anos atrás, antes da minha cegueira...no meu primeiro encontro amoroso!

V- Contaste isso à jovem?

C- Não... porque para mim, aquele momento há anos já não vale nada. Eu nem soube valorizar o que me rodeava, nem sequer apreciar a beleza daquele simples passeio. Este hoje, foi o meu primeiro encontro amoroso: soube escutar alguém, e isso para mim é o que mais importa agora.

Rita Couto... 23 de Setembro, 2007

Dois cenários, duas crianças.

Um

Uma casa escura,
Quatro paredes de madeira.
Pedaços pretos mancham o chão,
Ainda cheira a queimado.
O incêndio foi fraco, mas era recente.
Pequenina, encostada aos ferros que sobraram da cama,
chora baixinho. Sozinha em casa.
A luz era fraca, a terra já giráva longe do Sol.
O último movimento que a luz diurna captou,
iluminou vagamente o seu único brinquedo.
Ela fixou-o e gatinhou, fungando,
Até se abraçar à boneca de porcelana.
Cortou-se no braçinho sujo.
A mão da boneca estava partida. Desfeita!
Estoirou no fogo!
O que sobrava limpo e inteiro, era o sorriso da boneca.
Tudo o que a aconchegou e manteve calma.
Foi o sorriso.

Dois

Pequenina, e que postura tão correcta!
Era assim que assentava no sofá
forrado de paninho cor-de-rosa.
O penteado está perfeito:
Uma fitinha branca, contrasta o cabelo escuro, liso.
Prateleiras enchem-se de dezenas de bonecas.
Bonecas de plástico, de vidro e porcelana.
Paredes altas, brancas.
O cheiro de lavanda e a limpeza dos móveis.
A claridade atravessa os cortinados
Longos, macios... tornando a luz harmoniosa.
Os seus olhos, focaram os vestidos bordados,
E os sorrisos imóveis naquela porcelana toda.
“Não quero mais... quero vida nos sorrisos”
A grandeza daquele quarto era um abandono.
A criança lançou ao chão todas as bonecas.
Vidros partidos, e ainda pisados pelas sandálias duras,
Que cobrem um pézinho... tão delicado.
Rita/2007